Um Aspecto da Função Ideológica da Escola: o Currículo Oculto

Por Maria José Lopes da Silva*

Ao analisarmos os problemas educacionais, uma pergunta logo se levanta: será a escola uma transmissora de conhecimentos ou uma transmissora de ideologias?

Responderíamos que a escola, na verdade, é as duas coisas: se por um lado, é uma difusora dos valores ideológicos da classe dominante, por outro, também tem como atribuição a transmissão de conhecimentos.

Uma outra questão se põe hoje em dia: muita gente pergunta para nós, professores, "por que o meu filho não consegue aprender nada na escola?" É muito comum os nossos alunos estudarem bastante para uma determinada prova, mas se os testarmos naqueles mesmos conteúdos dois, três, quatro dias depois, já esqueceram tudo. Por exemplo, depois das férias, é sempre a mesma coisa, esquecem tudo o que "aprenderam no ano anterior". Por que será que essas coisas acontecem?

Pensamos que estas questões poderão ser respondidas a partir de uma análise que se faça da verdadeira função da escola. Dissemos, no início, que a escola é ao mesmo tempo transmissora de conhecimentos e difusora de valores ideológicos. Vale dizer que numa sociedade dividida em classes há a classe dos que trabalham e a dos que se apropriam do trabalho produzido pelos primeiros. Assim, numa sociedade capitalista, o trabalho está destinado às classes produtoras, às classes trabalhadoras. Quem se apropria desse trabalho é a burguesia. Da mesma forma em relação ao conhecimento. Como ele se produziu? Ora, ele se produziu nas relações entre os homens, nas relações sociais (de trabalho, familiares, culturais, etc.). Acontece que nas sociedades típicas de exploração, como é o caso da sociedade capitalista, o produto do trabalho gerado pelos homens nas suas relações mútuas é expropriado pela classe detentora do poder. Assim, o conhecimento é um meio de produção na medida em que é apropriado pela classe dominante, que o reelabora, transformando-o, para transmiti-lo através de uma instituição adequada que é, justamente, a escola. Então, é nessa medida que dissemos no início, que a escola é uma transmissora de conhecimentos. Ocorre que para que as relações de exploração possam se perpetuar na sociedade, é necessário que ao transmitir o conhecimento elaborado para a classe trabalhadora, a burguesia o faça, primeiro, de maneira banalizada, medíocre, de segunda mão, como se diz, e, segundo, de maneira seletiva. Quero dizer que nem todos aqueles que freqüentam a escola têm a possibilidade de se apropriarem do conhecimento da mesma maneira e na mesma proporção.

Na exposição que se segue sobre o problema do ensino oficial e das relações da escola com a sociedade, e que se estende aos problemas da democracia e às liberdades escolares, há também uma tentativa de resposta às duas questões postas inicialmente.

A escola tem, portanto, uma orientação ideológica. Por isso, a questão do conteúdo escolar é importantíssima. A questão da metodologia; a questão da sua orientação em relação às correntes pedagógicas... Se estes são conservadores, vão reforçar, naturalmente, as discriminações sociais, sexuais e raciais, a divisão entre o trabalho intelectual e o braçal, a importância da autoridade do professor. Se são inovadores, irão desenvolver o respeito à identidade de cada indivíduo, e a escola, certamente, estará voltada para as necessidades do aluno.

Numa sociedade dividida em classes, ou seja, numa sociedade em que o trabalho é dividido essencialmente em trabalho manual e intelectual, ou entre o campo e a cidade, o ensino também aparece dividido, como dois termos antagônicos. A escola, enquanto destinada aos interesses das classes dominantes, deixa de existir para as demais classes. Somente as classes possuidoras têm o direito a esta instituição especial que denominam escola, e que somente há pouco tempo, no início da Revolução Industrial, começou a se converter em perspectiva, numa coisa para toda a sociedade.

Só as classes dominantes têm uma instituição determinada para a educação das novas gerações, ainda que possa admitir entre elas indivíduos vindos de classes inferiores, para através dela serem educados para as funções superiores.

Só com o advento da Revolução Industrial é que surgiram instituições para a formação do trabalhador. A característica deste processo é que a estrutura educativa das classes privilegiadas, consolidada durante muitos anos, estendeu-se às classes subordinadas, levando-lhes o seu tipo de organização, a sua tradição e os seus métodos. E isto se deve ao fato da classe dominante procurar destruir as estruturas ou instituições típicas das classes subordinadas para impor as suas próprias.

Marx, no Prefácio à Crítica da Economia Política, estabelece uma relação tripla entre:

a. uma "base real", dada pelo conjunto das relações de produção, e que constitui a "estrutura econômica da sociedade";
b. uma "superestrutura jurídica e política" que se levanta sobre aquela base, e à qual corresponde;
c. "determinadas formas de consciência social".

Deve-se, entretanto, evitar fazer uma leitura esquemática destes três níveis, já que existe, como destaca o autor, uma identificação entre a "base real" com a sua "forma jurídica", e, em última instância, com todas as "formas ideológicas", em que homens e mulheres concebem e combatem o conflito real.

É, portanto, no interior da sociedade histórica, que podemos identificar a emergência da ideologia. Constitui-se a ideologia de representações através das quais os agentes sociais e políticos pensam a si mesmos, as instituições, as relações de poder, as relações de dominação. Estas representações justificam as formas da desigualdade, dos conflitos, da exploração e da dominação como sendo "naturais", isto é, universais e inevitáveis.

O discurso ideológico se caracteriza pelo ocultamento da divisão, da diferença, da contradição, na medida em que oferece aos homens e mulheres a representação de uma sociedade homogênea, sem divisões, sem antagonismos, ainda que de fato se ache totalmente dividida.

Pelo fato das idéias dominantes de uma época nascerem no meio das classes dominantes desta época, a ideologia é a tentativa de representar o universo do ponto de vista particular desta classe. Este ponto de vista objetiva escamotear as divisões sociais, isto é, a divisão do trabalho, a divisão entre as raças, a divisão entre os sexos, a divisão política, a do conhecimento...

Falando da nossa escola, da escola brasileira, ela mudou muito nas últimas décadas, devido a vários fatores, dentre eles, as misturas sociais. Vejamos: hoje em dia, nos bancos escolares, podemos encontrar o filho do operário, o classe média e o burguês. E isto pode até nos dar a ilusão de que todo mundo tem as mesmas chances, as mesmas oportunidades educacionais. Mas o que vamos verificar é que isto não é realmente verdade. E isto se deve sobretudo a mecanismos ideológicos que se vão produzir no interior da escola cujo objetivo é perpetuar as desigualdades, as diferenças de classe existentes na sociedade. Um destes mecanismos é aquilo que se chama o Currículo Oculto.

A primeira imagem que uma criança tem de si mesma, na maioria das vezes lhe é dada através da escola, nas relações com os colegas, professores, enfim, nas relações intergrupais e interpessoais que se produzem no espaço-escola. É lá, então, que, freqüentemente, a imagem do fracasso ou do sucesso é introjetada pela criança desde o maternal. A maioria dos filhos dos trabalhadores não está preparada para ingressar e se desenvolver nessa escola tal qual ela é concebida. Ao passo que os filhos da burguesia, sim, porque desde cedo, ainda no contexto familiar, já entraram, por exemplo, em contato com o conhecimento abstrato desligado da prática e já aprenderam a privilegiar a linguagem verbal nas suas comunicações. Essa criança, de alto poder aquisitivo, já se habituou a ser elogiada toda vez que faz um desenho bonito, canta uma música ou diz um versinho de maneira original, enquanto o filho do trabalhador vive numa outra realidade e aprendeu outras coisas. Portanto, quando essas crianças de origem de classes diferentes ingressam no mundo da escola, encontram uma realidade que privilegia determinados valores, como a competição, por exemplo. Esta escola tem como código principal de expressão a palavra na sua variante culta, ou seja, da classe dominante, trabalha o raciocínio abstrato completamente desligado da prática, da realidade do aluno, etc. A criança da classe popular encontra nessa escola um professor que valoriza apenas um determinado código de comunicação, de comportamento e de valores. Vê-se logo que esta escola, que de início parecia tão democrática, na verdade, não o é. Vamos verificar que muitos professores, logo de saída, já formam uma opinião dos seus alunos. Ou ele é "bom" ou é "mau". E raramente esta opinião muda ao longo do tempo. Assim, as crianças que são mais valorizadas pela escola tendem a melhor se adaptar e alcançar relativo sucesso, ao passo que aquelas outras, que, aliás, são a maioria, acabam sendo eliminadas brutalmente desta escola, nela nada conseguindo. Ao invés de se escolarizarem, se desescolarizam neste tipo de escola, o que mais cedo ou mais tarde acaba fazendo com que essas crianças sejam excluídas, eliminadas do contexto da escola. Assim é que este estigma do fracasso se interioriza de tal forma na maioria dessas crianças, que elas passam a se comportar de acordo com a expectativa que a instituição tem em relação a elas, ou seja, a de crianças inadequadas, mal resolvidas, de péssimo rendimento, em uma palavra, incapazes. O que vai fazer com que se reforce para essas pessoas o mito de que são culpadas pelo seu próprio fracasso, e na medida em que esses futuros trabalhadores ingressem no exército de mão-de-obra disponível à exploração capitalista, serão cada vez mais acomodados, achando que receberam na escola o que deviam receber mesmo, pois são "ïnferiores" e "incapazes". A função que vão desempenhar na idade adulta não dependerá mais da sua origem de classe mas do seu "esforço pessoal".

Este juízo negativo que muitos professores formam de seus alunos manifesta-se de duas maneiras: objetiva e subjetivamente. Objetivamente, através das notas, conceitos e classificações, e subjetivamente, através de comentários, mímicas de desagrado, irritação, intolerância, através do desprezo que passam aos alunos, etc. Por isso é muito comum adultos atribuírem a si mesmos a culpa por não terem conseguido estudar: "não aprendi nada na escola porque era burro, não tinha cabeça para o estudo" (grifo nosso). Quando se sabe que o insucesso da aprendizagem tem dois lados: o de quem recebe e o de quem transmite. Não queremos crucificar os professores, mas isentar o sistema educacional como um todo da responsabilidade pelo fracasso da maioria das nossas crianças, é um equívoco.

Então, o que estamos vendo é que o critério do "esforço pessoal" desencadeia relações de automatismo que podem ser para mais ou para menos. No primeiro caso, quando o aluno, estimulado, vai rendendo cada vez mais porque se adapta mais facilmente ao estilo de trabalho do professor e à sua pessoa, e, no segundo caso, o contrário. Portanto, o que queremos mostrar é que o Currículo Oculto tem como função ideológica, através do critério do "esforço pessoal", preparar os alunos ou para serem dominados ou para serem dominantes neste tipo de sociedade em que vivemos. Pois numa sociedade competitiva como a nossa, a escola também é competitiva, porque nela só se dão bem os "melhores", e é neste tipo de escola que os filhos da classe privilegiada descobrem, muito cedo, a sua "superioridade" e os demais, a sua "inferioridade". Portanto, o critério do "esforço pessoal" tendo como conseqüência a autodesvalorização e a autovalorização, tem como objetivo perpetuar a origem de classe dos alunos, eliminando, sobretudo, daquele contexto escolar o "mau" aluno. Sim, porque se formos consultar as estatísticas mais recentes, aqueles alunos que reincidem na mesma série, que se evadem da escola, são principalmente, os rotulados de "maus alunos" e "inadaptados".

Ao exercitar um processo permanente de crítica e autocrítica das práticas escolares (Currículo Real e Oculto) poderemos viver os conflitos e as diferenças como forma de crescimento individual e social, além de construir um espaço permanente de participação na elaboração do currículo. Nossa atenção volta-se, então, para o paternalismo transmitido pelo Currículo Oculto, e, também, para um dos elementos que veiculam este último: a postura do professor. Porém, a metodologia, igualmente, pode escamotear aspectos ideológicos sérios.

Os professores devem ficar atentos aos valores que eles próprios incorporam, porque eles determinam a seleção dos conteúdos, estratégias, a metodologia, as habilidades e a avaliação... O próprio questionamento, às vezes, está impregnado de ideologia.

No tocante aos currículos escolares, cabe destacar vários aspectos importantes na transmissão do Currículo Oculto:

1º os professores não têm assegurado o pleno conhecimento do novo currículo antes de sua implementação;

2º muitos professores não têm uma posição crítica em relação ao Currículo Oculto;

3º inúmeros professores não têm consciência dos direitos dos grupos oprimidos na sociedade;

4º os currículos não são voltados para a transformação social, tendo em vista formar um cidadão consciente, crítico e participante;

5º os currículos não são representativos dos grupos desprivilegiados, pessoas de raças não-brancas, mulheres, etc.;

6º os currículos excluem os valores culturais e históricos presentes no cotidiano;

7º os currículos não ensinam a superar a situação de marginalidade vivida pelo aluno, nem a modificam no sentido de um processo de conscientização cultural e política;

8º a própria concepção dos currículos é ideológica, porque é fragmentária, desarticulada, não avançando, na prática, para uma verdadeira interdisciplinaridade e transdisciplinaridade;

9º os currículos valorizam o supérfluo, contribuindo para ampliar a marginalidade do conhecimento das mulheres, dos trabalhadores e das pessoas de raças não-brancas;

10º os currículos são montados de forma a perpetuar e legitimar as desigualdades econômicas, as divisões de classe, gênero e raça, tanto nos empregos como nas riquezas;

11º os textos didáticos veiculam ideologia e não são, via de regra, trabalhados criticamente pelos professores e especialistas.

Deste modo, a escola tem muita responsabilidade no fracasso escolar, na permanência da clientela no mesmo nível da hierarquia social e na fabricação de trabalhadores dóceis e conformistas. A educação serve para reforçar e reproduzir as divisões e injustiças sociais, não se revelando, portanto, democrática, apesar de enfatizar (só em nível de discurso) a permanência e o êxito no sistema escolar.

Como vimos, a seleção do conhecimento escolar é arbitrária, porque exclui, por exemplo, as tradições culturais de classes e grupos subordinados para priorizar as tradições culturais dos grupos e classes dominantes. Tanto o Currículo Real, Oficial (explicitamente) e o Currículo Oculto (implicitamente) têm poder socializador na escola, pois certas práticas e rituais escolares moldam e fabricam consciências. A escola legitima a divisão social, racial e sexual do trabalho, uma vez que o conhecimento escolar é distribuído de forma desigual, conforme os diferentes grupos e classes sociais. A distribuição dos Currículos Ocultos também é diferenciada, de acordo com a classe social, a raça ou etnia e o sexo da clientela. Assim, inculcam-se diferentes atitudes e características de personalidade, de acordo com os diferentes grupos e classes sociais.

O que queremos mostrar é que a escola efetivamente não tem cumprido a sua função social: transmitir conhecimentos factuais, habilidades e valores, como, por exemplo, a honestidade, e o orgulho da própria herança racial; saber aprender mais, mesmo depois que a escolarização formal tiver terminado; ser intelectualmente aberto; ver-se a si mesmo como parte de uma comunidade democrática; agir cooperativamente.

A nossa escola tem funcionado muito mais como reprodutora da ideologia do grupo dominante do que como difusora do saber. Na verdade, ela cumpre o seu papel de transmissora de conhecimentos apenas para uma minoria que pode "fazer carreira" através da escolaridade que recebe, porque para a maioria, nossa escola é uma fábrica de obstáculos, ao invés de funcionar como uma linha auxiliar de superação de dificuldades.

Urge, portanto, uma mudança de atitude, que eu diria, primeiramente de caráter ideológico e, depois, de caráter pedagógico. Esta mudança implica uma mudança de postura que possa, efetivamente, encarar o filho do trabalhador como uma peça fundamental para o nosso desenvolvimento. É necessário que se reconheça o seu direito de adquirir conhecimentos. É preciso que o professor se despreconceitue em relação a este aluno e perceba que é de fundamental importância para o processo de transformação desta sociedade, que o filho do trabalhador tenha acesso ao saber elaborado da escola. É necessário também que haja uma mudança quanto à forma de se transmitir o conhecimento, tanto a nível pedagógico quanto ideológico, aliás, o próprio conteúdo deve mudar para atender às reais necessidades do aluno e da sociedade em que se insere. Que o conteúdo transmitido não seja desligado da prática, mas que parta da realidade, da vivência, da experiência do educando. Que seja uma escola que ensine, sobretudo, a pensar, raciocinar, desenvolver o juízo crítico, conhecer a realidade em que se vive e suas contradições. Não se trata de uma pedagogia de compensação, ou seja, transformar o filho do trabalhador em burguês. Aceitando que diferença não é inferioridade, pensamos que uma nova pedagogia terá que ser formulada. Ela não sairá de gabinetes nem de cabeças iluminadas, mas da diversidade. Diversidade de idéias, saberes e experiências.

O professor é levado sempre a fazer uma escolha: contra ou a favor do aluno. E esta escolha não implica apenas uma visão pedagógica mas também, e sobretudo, uma visão ideológica, diferente.

Por último, gostaria de frisar que a ideologia do Currículo Oculto é uma faca de dois gumes: pode levar à passividade mas também à revolta. A revolta individual, nós professores, conhecemos bem. É aquele aluno que depreda a escola, é antissocial, agressivo... Frequentemente, a raiz desses comportamentos está na maneira como a escola trata este aluno. Sabemos que esta revolta pode ser canalizada de uma forma positiva, desde que o indivíduo tenha uma consciência crítica dos seus problemas: "Por que a escola funciona assim? A que interesses serve? Qual o papel do trabalhador no contexto da escola e da sociedade? Que sociedade temos? Que sociedade queremos?"

*Maria José Lopes da Silva é lingüista e docente; consultora e pesquisadora etnográfica em Educação e Cultura.

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